É preciso sangue? - Uma discussão necessária


Todo mundo ama jogos (ou games, como preferir). E assim como em quase toda relação, também existem discussões, certo? Seja por preços abusivos, estratégia de marketing torpe, ou muitos outros similares. Mas uma coisa passa batido por muita gente, e só vem a tona em casos negativos. A violência extrema.




Um tópico acobertado

Antes de fechar essa guia, não caro leitor, eu não vou fazer o clássico e já manjado discurso de que "jogos causam violência" - porque realmente não causam.

Mas sejamos francos aqui. Uma discussão honesta. Uma das "ervas daninhas" que a indústria dos jogos ainda não arrancou da sua plantação (assim como era com a sexualização excessiva nos anos 90-2000), não seria a violência como ingrediente fundamental das suas produções? Esse texto não tem a intenção de promover 'console wars'. Porque nenhuma empresa escapa disso. E também não se trata de militância - o intuito desse texto não é achar defeitos até em Mario, porque aí eu iria perder a razão de vez.

"mAs VoCê TaMbÉm MaTa No MaRiO". Não, a discussão não chega a esse extremo




















Pegue todos os lançamentos ao longo dos mais de 50 anos de indústria (onde eu digo 'indústria', entenda-se a dos jogos). Quantos abordavam uma narrativa que não deixasse a violência, o tema da morte não-natural ou qualquer similar explícito? Alguns poucos. E isso não se restringe à plataforma. As três gigantes do mundo atual - Sony, Microsoft e até a Nintendo flertaram direta ou indiretamente com essa temática. Isso descartando as produtoras independentes, que se eu for listar são muitas.


A ética, a índole e a empatia

"A morte de poucos é uma tragédia, a de muitos, uma estatística". Essa frase, dita por Stálin, pode causar repulsa em alguns, mas infelizmente é a verdade da natureza do ser humano. Esse é a percepção da empatia pela dor alheia. A forma como lidamos com a morte é relativa. Um professor me disse uma vez uma coisa que me deixou pensativa.

Quando você ia nas suas aulas de História (ou Estudos Sociais, se você for um pouco mais antigo/a). Você ouvia as enormes baixas durante as grandes Guerras, e responda honestamente: você conseguia sentir empatia? Por mais que você quisesse, você conseguia pensar como eram os milhões de mortes provocadas, ou só tratava como um número para ser potencialmente lembrado na prova?

Um comparativo mais atual. Ao ver as mortes diárias por Coronavírus, você sente REAL empatia por cada família que perdeu um membro, ou considera como um gráfico? Provavelmente nenhum dos dois. Sua índole indica que aqueles números são vidas, mas se você não experiencia aquilo com alguém próximo ou considerado, você não iria chegar ao ponto de chorar por aquela pessoa. (Aliás, é essa índole que falta a quem considera isso só uma gripezinha).


O resultado da "Rosa de Hiroshima". A imagem traz a sua índole humana ou a sua real empatia à tona?




















Voltando ao cerne do texto - os jogos são realmente violentos? Afinal, lá a morte é tratada como algo quase que natural. Seja em poder matar qualquer um, como em GTA, um inimigo humano, como em The Last of Us, ou um ser fantástico, como em Breath of The Wild. É de certa forma a mesma frase de Stálin. Não conseguimos ver cada morte como algo a ter empatia, porque ela nos cerca em todo jogo, e para nós, por mais que tentemos, só serão números frios.

Até mesmo quando você "morre" nos jogos, é só um simples 'respawn' e pronto, você voltou no tempo. "Ah, mas você quer levar humanidade a um simples jogo? Nem são pessoas de verdade!". Claro, mas você muito provavelmente já chorou com a morte de um personagem querido em algum jogo. Não são pessoas de verdade afinal, é só uma pilha de código reunida em polígonos. Além do que, dizer isso simplesmente é invalidar a proposta da Imersão, um dos pilares da mesma indústria.

Você certamente já deve ter passado raiva ao morrer em Minecraft




















Somos tão torpes assim?

Isso sem contar com as cenas extremas. Tortura, estupro, esquartejamento, decapitação, as quais eu me recuso de referenciar em imagens aqui. Se a premissa fundamental de qualquer game é a diversão, então qual é o fascínio de todos por isso? Porque isso atrai tanto o público a comprar um jogo? É essa realmente a forma que temos de descontar nosso sadismo reservado de cada dia? É uma forma de "amadurecer" mentalmente? Ou é só um momento desagradável que você acompanha no jogo por fazer parte dele?  Então nossa diversão primitiva seria só fazer o mal, ainda que pelo bem?

Sim, existe a classificação indicativa. Mas atire a primeira pedra quem nunca jogou ou viu alguém jogar um game com cenas fortes abaixo da idade indicada. E para não dizer que eu estou sendo parcial, o mesmo vale para o resto da mídia. Imagens "chocantes" até eram divulgadas em jornais, é verdade. Mas isso é lembrado muito mais como um recurso sensacionalista dos anos 80 do que uma tática atual. Quando foi a última vez que você viu a foto crua de um morto nos periódicos? Não se trata apenas de mostrar a realidade, se trata de cenas desagradáveis que não deveriam ser desejadas para nenhum ser humano.

Mas então, o que eu quero dizer com tudo isso? Normalizar a morte e a violência não é o caminho, então todo mundo deveria terminar jogando apenas puzzles o resto de suas vidas? Claro que NÃO. O problema não é o uso da violência em si, e sim COMO ela é usada. O que ocorre na sociedade hoje e sempre só se reflete na indústria. A banalização da vida é quase que recorrente nos jogos. Podemos até estar por um ideal nos games, mas matamos mesmo assim. Não é uma atitude extrema, uma última consequência. É a primeira reação. É pegar em armas e pronto. Simplesmente não existe outra alternativa.

Vamos matar. Motivo? Não faço ideia, acho que é pra ganhar o jogo. Mas pelo menos tem skin legal






















Você no controle

Mas não vamos generalizar aqui. Nem toda a indústria está corrompida. E não vou citar jogos sem enredo, como FIFA (tirando o 17, 18 e 19), por exemplo. Um jogo que a violência não necessariamente é inerente a você é Undertale. Você cai em uma terra corrompida pelo mal. Você tem a OPÇÃO de se usar da violência. Não é sua obrigação matar em prol da vitória. Ou você pode, em casos capitais.

E mesmo assim, se quiser ir para a rota genocida, você muito provavelmente vai acabar sentindo empatia de um boss em alguma ocasião. Toriel? Papyrus? Metatton? Asriel? Sans? Não é só a morte pela morte. Você tem completa percepção dos seus ideais e motivos. Você pode se usar da violência, mas sua índole não trata só como um inimigo a mais, pois você sabe quem é cada personagem. E você tem noção das atitudes, por mais que sejam apenas pixels bidimensionais. É uma escolha sua, é onde sua índole tem poder de decisão maior que qualquer outra coisa no game.

Undertale é um excelente exemplo da abordagem da morte. Você tem o direito, mas tem consciência. E tem a opção


























Vamos resumir todo o texto. Jogos podem não deixar uma pessoa violenta (exceto em casos específicos), mas diminui nosso senso de empatia. Tratamos o universo do jogo como um mundo "desalmado". Não é necessário parar de jogar o que você já joga, eu obviamente não posso definir seus gostos. Mas é algo interessante a se pensar sempre. Você deve ter a opção. Jogar um jogo só por ser algo violento é uma das formas mais torpes do sadismo humano. Jogar por não ter opções é uma culpa que a indústria carrega. Literalmente as mãos dela estão sujas de sangue - ainda que ele seja composto de meros polígonos tridimensionais.

Não se trata de apagar a morte e a violência, isso não é a realidade. Seria um tanto quanto sem sentido - para não dizer militância desnecessária. Mas sim dar o merecido holofote à esses dois assuntos. Muitas produtoras hoje em dia se orgulham de mexer com os sentimentos das pessoas. Um jogo não vai mexer com as suas emoções se você matar muito. Mas aquela despedida de um personagem que você acompanhou pode te levar as lágrimas. É tudo uma questão de saber dosar todos esses elementos. Pode se tratar só de um jogo, mas que reflete na nossa saúde mental. Nada na vida é um evento isolado.