Um relato dentre milhares sobre The Last Of Us Parte II


Recentemente houve uma discussão (treta de internet) sobre a arte em videogames e se ela já estava na altura de mídias como livros e filmes. Esse é um dos campos onde, se falado por um círculo de pessoas com ótimo senso de diálogo, rende um ótimo debate sobre um assunto muito válido.

Vejo arte (em qualquer meio de comunicação) como algo que causa sentimentos variados dependendo de quem a consome. Algo que dialoga com sua época e reflete sua sociedade atual. Mesmo que cada mídia tenha uma proposta e experiência diferente, o conceito da arte permanece o mesmo, ela é uma linguagem universal, afinal

É por essa razão que The Last Of Us Part II é muito atual, principalmente se visarmos o público-alvo: os “Nerds Gamers”. Esse jogo é sobre a capacidade de se colocar no lugar do outro, mesmo que, de primeira vista, esse outro em questão seja alguém cujo nosso principal desejo é que sofra no inferno por arrasar aqueles a quem nos apegamos, sem nem mesmo sabermos a história por trás disso tudo. E, depois das primeiras 12 horas do lançamento do jogo, ficou escancarado que empatia, sensibilidade e maturidade é algo que a comunidade da qual faço parte infelizmente não tem.

Falarei sobre isso mais pra frente, deixe-me dar a devida atenção que o jogo mereceu quando foi lançado.

Quando a primeira cutscene terminou e o primeiro cenário apareceu na minha frente, com Joel cavalgando pela rua com casebres desolados e a luz do sol adentrando com timidez pelos galhos das árvores ao fundo do cenário, ficou explícito que aquele jogo era um dos ápices gráficos do que um PlayStation 4 ou a tecnologia atual em si chegaria. Mesmo já tendo presenciado diversos outros primores visuais, com 5 minutos de jogo eu já tinha batido o martelo. “É um dos jogos mais lindo que já joguei”, pensei. E contra fatos não há argumentos, já dizia os ditados de longa data.

Os desenvolvedores vão além de cenários inspiradores e investem num quesito que exponencia ainda mais as sensações que o jogo quer transmitir: as expressões faciais. Não é difícil confundir as animações com pessoas de verdade quando focam a câmera no rosto dos personagens. Movimentação das pálpebras, das sobrancelhas, da boca. Cada detalhe feito pra simular ao máximo um rosto humano real. Sem filtros de Instagram ou maquiagens que deixam os rostos lisos como se fossem de cera, e sim leves relevos e ínfimas marcas. E tudo isso durante a gameplay, não só nas cutscenes. Fiquei constantemente girando a câmera e observando as feições dos personagens em tela enquanto executava qualquer ação só para ver mais e mais disso.

Nada dessa imersão ótica iria funcionar se a jogabilidade deixasse a desejar, o que não acontece. O jogo respondeu com tranquilidade aos meus comandos quando eu queria fazer vários ao mesmo tempo. Ligar ou desligar a lanterna enquanto ativava a mira ou pulava algum muro, carregar a arma enquanto me agachava ou deitava, pegar itens pelas mesas ou gôndolas enquanto corria e, no segundo seguinte, já os atirava nos inimigos sem diminuir o passo, a fim de me aproximar com o oponente ainda atordoado e finalizá-lo. O jogo não sofre com confusões de programação quando se ativa mais de um comando por vez, fosse durante um tiroteio ensurdecedor ou enquanto eu aniquilava os inimigos na furtividade, que também funciona para qualquer estratégia que eu pensasse. Faço uma ressalva positiva aqui para os momentos onde haviam inimigos humanos e infectados ao mesmo tempo. Bastava ficar escondido em um canto, arremessar uma garrafa no meio da área e esperar a mágica acontecer. Jogar uns contra os outros e esperar um dos lados se dizimar para depois terminar o serviço foi a estratégia mais simples e satisfatória que tive com o jogo. Junte essa gameplay com as animações absurdas do jogo e começamos a entrar na verdadeira intenção por trás disso tudo: sentir na pele o que protagonistas passaram, entender o lado deles. Mas sentir o ódio e a empatia de cada um não seria o bastante.

O jogo não tem pause nos inventários. Qualquer coisa que você queira fazer tem de ser feita enquanto há outras ao seu redor acontecendo e que você não pode ignorar. Para se curar, é necessário tempo para enrolar as bandagens. Para trocar de arma, é necessário tirar a mochila das costas e trocar de item. Agora imagine ter de fazer essas coisas com gritos angustiantes dos infectados, cliques dos estaladores ou até pessoas querendo alcançar você. Desesperador e estressante. Capaz de exaurir sua mente e levar seu psicológico até o limite. O fato de poder recomeçar se morrer ali não tranquiliza em nada. Você se sente tão imerso na pele de Ellie ou Abby ao ponto de ficar com medo da morte. Após a luta contra o Rei dos Ratos, fiquei incapaz de jogar por uns 40 minutos. Eu estava com falta de ar e mentalmente exausto. Batimentos cardíacos no zênite. Nervoso. Desesperado. Estressado. Psicológico no limite. Temendo a morte. Muitos até aqui podem considerar meus elogios um tanto hiperbólicos, mas dou minha palavra que, levando em conta minha consciência sobre as desgraças da vida, não foi algo tão fácil de se digerir.

Existem comentários por aí dizendo que enquanto o jogo executa com perfeição as partes técnicas, a parte narrativa é péssima, e é onde toda as polêmicas se concentram, a razão da qual o game sofreu review bombing no Metacritic e até mesmo uma petição para que a Naughty Dog o refizesse. Fazer esse texto foi a principal razão para que eu fizesse de conta que o hate em cima do estava tendo opiniões bem aprofundadas, analisasse cada uma sem me estressar e contra-argumentasse. Então vamos lá.

Não, a narrativa não é mal feita ao ponto de ofender roteiristas.

Mas ela tem sim certos pontos que beiram o pecado e a tornam mais falha do que deveria. O maior deles, e que me impede de dar uma “masterpiece” impecável, é a brusca quebra de ritmo que causa a troca de personagens no meio da história. Após jogar 14 horas sob a pele da Ellie, acompanhando a decadência mental que a mesma vai sofrendo por causa do desejo da vingança (veja como ela coloca sua vontade de matar Abby acima das necessidades maiores daqueles a sua volta, como a gravidez de Dina), é um balde de água fria quando o clímax ocorre no teatro e voltamos no tempo pra acompanhar os três dias de Seattle através dos olhos de Abby. Jogar com ela é necessário para os fins morais do jogo e adorei ver os acontecimentos do outro lado da cidade, mas não deixa de ser uma montagem muito mal executada. Se fosse apenas o flashback da juventude de Abby (onde a trama entre Joel, Ellie e Abby se entrelaçam e da origem ao desejo de vingança de Abby) para logo voltar ao teatro, não teria problema nenhum. Mas a queda de imersão é grande, principalmente se contarmos em como o “Seattle Dia 1” com a Abby soa bem arrastado em relação ao que havia acontecido até então. Durante essa parte, joguei muito mais pela pressa de chegar logo na cena do teatro novamente do que pela sensação de querer ver a trama por outro ângulo. Só depois da metade do segundo dia é que você consegue engatar de novo igual antes, e no final do terceiro dia eu estava desejando que o restante do jogo fosse com Abby. Seria muito melhor se esses dias em Seattle fossem intercalados entre as duas personagens e não 3 dias com Ellie > Encontro no Teatro > 3 dias com Abby > Encontro no Teatro.

Outro ponto a se questionar é em como o jogo trata a morte dos personagens recorrentes como se não fossem nada, conhecido como “shock value”. Aqui já é algo muito mais passível a interpretações, estas que estão escassas hoje em dia. Em termos de construção narrativa isso é ser algo negativo, já que os personagens que sofrem com isso nesse jogo não são desenvolvidos, também vejo como uma liberdade. Mas tem muita coisa acontecendo em tão pouco tempo, então tratar essas mortes da maneira que fizeram foi para reforçar um ponto que muitos se esquecem: nesse mundo apocalíptico, os sobreviventes são… sobreviventes. Não são heróis, salvadores do mundo, super humanos ou seja lá o que você acredita que protagonistas de distopias são. A morte de Jesse e Manny são os melhores exemplos disso. Ambos tomam um tiro inesperado no meio da cabeça e morrem antes de atingirem o chão. No segundo seguinte, as câmeras esquecem de suas existências e já somos obrigados a esquecer também (assim como Ellie e Abby) não por falta de consideração, mas porque já tem uma arma apontada pra cabeça de outra pessoa que ainda está viva. Mesmo com a falta de mão em não aprofundar esses personagens importantes para as estrelas do game, essas mortes repentinas me fizeram se lembrar em como nossa vida é frágil, onde você nunca sabe quando as coisas acontecem pela última vez.

Não há tempo para pensar. É a mesma coisa com cada inimigo humano que derrubamos no jogo. Nos lembramos dele depois de matá-lo ou já vamos até o próximo? As mesmas ações, mas que são observadas de maneiras distintas umas das outras, mas não para mim. Senti sim uma certa culpa ao explodir dois caras que estavam me caçando enquanto se lamentavam que o filho de uma amiga não havia resistido aos ferimentos e falecido.

Outro ponto aonde criticaram tanto o jogo é porque, além de Joel morrer logo no início e servir de principal catalisador para o enredo, o jogo tenta “praticar lacração” ao deixar Ellie como centro das atenções apenas por ser lésbica. Serei breve.

A protagonista ser homossexual não altera a trama em nada, não afeta de maneira nenhuma todos os argumentos centrais da obra. Então, se você acha que a homossexualidade alheia é algo a ser considerado como ponto negativo para uma obra como um todo, que “eu não tenho preconceito, tenho até amigos que são, mas não precisa ficar colocando desse jeito nas coisas”, que o mundo era melhor antigamente por parecer que não havia discriminação nenhuma (quando na verdade era o oposto. Era muito mais fácil cometer violência e agressão verbal quando não haviam câmeras de fácil acesso para te flagrar, né?), feche esta crítica e não jogue este jogo, elas não são para você. Estude bastante ao ponto de conseguir construir uma nave com recursos infinitos e suma da Terra, esse lugar não gira em torno de ti.

Também foram feitas críticas pelo fato de o jogo não ter um sistema de escolhas onde não podemos tomar as decisões das personagens, e aqui sou completamente contra. Colocar um sistema de escolhas aqui tiraria todo o peso da mensagem que o jogo busca passar sobre ação e reação, causa e consequência. Você mataria todo mundo que visse pela frente e no final sairia ileso porque fez escolhas sem nexo apenas para alimentar sua fantasia sobre pessoas que você acha conhecer a fundo e dormiria com a consciência limpa. The Last Of Us Parte II tem a intenção de fazer o oposto disso. E, independente da história ter sido boa ou ruim, ele faz.

Um último ponto e aqui nas partes técnicas é que o jogo é muito violento e a inteligência artificial é inteligente demais.

É só isso mesmo, aqui eu não preciso falar mais nada…

Se o jogo tem aquela quebra de ritmo dita anteriormente, por outro lado ele cumpre com decência suas duas principais personagens ao mantê-las na mesma linha tênue entre o ódio e a empatia. O desafio era maior quando se tratava em fazer com que nos apegássemos à loira parruda tendo em conta que é ela a responsável por ceifar a vida de Joel. Como querer que essa mulher escape ilesa das mãos efervescidas com sangue de Ellie?

Os flashbacks de Abby (mesmo encaixados de forma equivocada e arrastados) é o que faz todas as engrenagens se mexerem. Nada do que o jogo transmite iria funcionar se fosse contado através de um curto diálogo em uma cutscene ou narração da mesma e, quando nos damos por si, estamos ao final do jogo vendo que Abby é muito melhor do que Ellie. Não é Abby que aponta um canivete para o pescoço de um garoto desacordado e enfraquecido apenas para satisfazer sua própria vontade em ter uma luta final, mesmo com esse garoto sendo o responsável por sua amada e gestante ter saído viva. Se Lev não estivesse no teatro naquela hora, Dina estaria sem pescoço. Mas é Abby quem deixa Ellie e Dina viverem mesmo com a garota tendo matado todos seus amigos sem pensar duas vezes.

Mas talvez seja uma questão de tempo. No fim, ambas saem com vida e tendo aprendido a tão infame empatia, mas cada uma no seu ritmo. Abby precisou apenas conhecer Yara e Lev (ambos com um carisma astronômico) para aprender a dar segundas chances e seguir com a vida, enquanto que para a outra foi necessário sentir a culpa da própria teimosia ao negar o regresso para Jackson, ficar solitária e perder dois dedos da mão esquerda. Colocar sua necessidade de vingança acima até mesmo acima de sua esposa e enteado foi o último prego no caixão para que Dina a abandonasse. É um aperto no coração quando, na luta final, onde ambas as protagonistas estão a um passo da morte, a garota que ainda não aprendeu a lição resolve mostrar que seu desejo de ódio já ultrapassou a linha da loucura, um lugar quase inescapável. Só então que Ellie aprende sua lição e larga essa ambição perversa, retornando para um lar vazio e sem vida, falhando em tocar seu violão uma última vez (ela nunca mais poderia tocar novamente), o deixando ali encostado na janela e logo em seguida, ao sair da fazenda, fica claro que ela finalmente superou a morte de seu protetor, mas tendo que aceitar as consequências de toda a trilha que seguiu.

Por último, o centro disso tudo. O responsável por matar o doutor que salvaria o mundo apenas por cravar uma memória afetiva de sua falecida filha em Ellie.

Joel nunca foi um herói ou alguém com um certo altruísmo, isso fica explicito já no início do primeiro game, lançado há 7 anos. Tudo que Joel fez no hospital para salvar Ellie não foi apenas por bondade ou compaixão pela garota, foi por ele mesmo. Ele quis fazer aquilo, ao ponto de contar a mentira que encerra The Last Of Us. Seria um erro crasso se, aqui nesse game, essa mentira não fosse lembrada ou não trouxesse consequências, vide as vertentes de The Last Of Us Parte II. E ela veio. Ellie rompe relações com Joel mas não vai embora de Jackson. Vemos essa cena com dor no coração, mas não sem antes lembrar que Joel estava tentando ser alguém melhor depois dos acontecimentos no hospital. Estava tentando ser melhor pela Ellie, como podemos ver nos flashbacks. A cena do museu entre os dois é uma das coisas mais tocantes que já vi nos games.

Só que de boas intenções o inferno está cheio, e uma hora a conta chega. E por ironia do destino, Joel morre por ajudar alguém que nem sequer conhecia, um ato que não fez no início de The Last Of Us, e que nos mostrou que ele não era nenhum herói. No último flashback (ah, os flashbacks...) vemos o mesmo segurando o choro ao ouvir Ellie dizer que estava disposta a tentar perdoá-lo. Pouco antes disso, o mesmo decreta:

“Se Deus tivesse me dado uma segunda chance naquele momento… Eu teria feito tudo igual.”

A mesma atitude, mas concluídas através de ideais diferentes. Na primeira, pela vontade de não querer aceitar uma perda mesmo que isso significasse sacrificar a possível salvação da humanidade. Na segunda, por um afeto muito mais crível e por enxergar em como aquela garota ao seu lado merece decolar até a lua em um futuro. Joel morreu olhando para Ellie, mas com certeza foi embora com a consciência limpa, seja pelo bem dos outros ou apenas para se sentir melhor consigo mesmo. Em um mundo onde não há uma linha divisória entre “bom” e “mau”, Joel é o maior destaque entre essas camadas maniqueístas e imperfeitas.

Era muito mais fácil jogar seguro e fazer um jogo com a mesma fórmula do primeiro, adicionar alguns elementos novos que não agregassem tanto assim para o escopo narrativo, colocar um final polêmico e impactante como seu antecessor e pronto. Venderia absurdos na pré-venda do mesmo jeito. Receberia aclamação universal. Nota alta no Metacritic e indicação ao GOTY eram garantidas. Mas a Naughty Dog de um passo corajoso e criou não só uma possível referência, mas um jogo que vai servir como medidor daqui pra frente. Qualquer AAA que lançar no mercado prometendo gráficos de ponta, história com forte teor gramático e jogabilidade refinada vai ser posto lado a lado com esse aqui. E de início muitos vão fracassar em ser superior. Não é de agora que a desenvolvedora vem se mostrando uma das linhas de frente nos grandes lançamentos, e não é agora que ela vai deixar de ser. Ainda mais se levarmos em conta que ela foi corajosa ao não fazer um produto mastigável feito pra agradar “fãs” que acreditam que tudo tem que ser do jeito que eles querem. Mas, parando para pensar pelo outro lado, ela pode ter caído na armadilha de fazer estes produtos em si virar pastiche para o “outro lado” da comunidade após a recente notícia de que a Sony estaria absorvendo os estúdios menores para focar apenas nos AAAs.

Voltando ao assunto da arte entre as mídias, não é tão complicado assim se formos pensar de forma sucinta. Muitos dirão que jogar esse jogo foi como assistir um filme ou uma série forte, e que finalmente os games estão alcançando os patamares cinematográficos. Mas eu penso diferente. Acredito (e espero) que jogos não estão tentando ser iguais em nada nos outros tipos de entretenimento, e sim que estão tentando correr paralelamente com as outras mídias sem tentar ultrapassar nenhuma. Muitos esquecem que mesmo sendo algo relativamente novo em relação aos outros meios, jogos são uma mídia única. Jogar esse jogo não foi como ver um filme ou uma série, foi como jogar um jogo. Foi como jogar The Last Of Us Parte II.

Após a premiação do TGA ter consagrado ele com sete prêmios, incluindo o máximo da cerimônia, é mais do que óbvio que muitos vão tentar copiar essa fórmula para terem destaque e render dinheiro. E, pra bater o martelo, um verso da Mc Melody: “fale bem ou fale mal, mas fale de mim”. Sendo The Last Of Us Parte II o apogeu das criações humanas para uns e o anticristo para outros, isso só prova ainda mais que ele não é indiferente. Independente da vertente que você usa para falar dele, ele está na sua cabeça. Ele te atingiu. O jogo não veio até você esperando seu feedback, você é quem foi até o jogo para falar sobre ele.